domingo, 10 de maio de 2015

A cozinheira de Salazar

A Cozinheira das Cozinheiras


Rosa Maria, a autora deste livrinho, logo na  introdução, não perde tempo a esclarecer-nos quanto ao statuts do caldo nas mesas portuguesas do Estado Novo: «É o primeiro prato de todas as mesas, e o único, quase sempre, da gente pobre». Mas não se fica por aí: «O caldo, nas mesas fartas, prepara o estômago para receber os pratos que se seguem.» Uma pérola, estas linhas de Rosa Maria, a cozinheira das cozinheiras do Regime Salazarista. 

Mais que um livro de culinária, "A cozinheira das cozinheiras" é um tratado sociológico dividido em centenas de receitas. Basta abri-lo ao calhas e salta-nos a receita do doce "espera marido", que ainda por cima pretende que se atinja um "açúcar em ponto de espadana". Seja lá o que isso for, parece moroso, quase um procedimento laboratorial.
No livro de Rosa Maria, todas as receitas que incluem animais não dispensam depenar-se primeiro a galinha, lavar os intestinos ao porco, chamuscar e limpar as vísceras ao pato e esta piéce de resistance que é embriagar perus com vinho branco antes da matança, embora com o toque de misericórdia de "ir entretendo esta embriaguez até à ocasião da morte, para que esta seja suave". Isto divide créditos com algumas séries policiais americanas. Mas Rosa Maria estava longe de ser uma mente criminosa, nem sequer um alvo dos actuais grupos de defesa dos animais. A nossa Rosa não passava de uma das "cozinheiras de Salazar", que, à imagem do ditador, admitia com simplicidade a tortura de seres vivos no local de trabalho (leia-se calabouços da Pide). E, como se deduz, manter a condição feminina de barriga encostada ao fogão, com um peru aos tombos pelo quintal.

Por falar em barriga, a contra-capa do livro também não nos desilude, quanto ao seu grau altamente educativo. Aqui, anuncia-se o próximo volume: "Fecundação, gravidez e parto", de um tal Ch. Vernau, "Livro indispensável a todas as mulheres, para que conheçam a sua nobre missão procriadora (...) um volume profusamente ilustrado, com gravuras a preto e a cores.» Brrrrr.

Este livro de culinária, com a chancela da Civilização Editora (outrora Livraria Civilização)  foi-me oferecido por piada, mas na verdade já experimentei algumas receitas. Saltei as partes malignas e obtive bons resultados. Quanto às formigas que não cozinham de todo, adquiram-no para atirá-lo às ventas de quem  se atrever a comentar "o bem que o doutor Salazar fez ao nosso país." O mesmo país onde os caldinhos dos pobres e os caldinhos dos ricos mantinham a boa ordem social. A bem da Nação.


I LOVE 560





2 comentários:

  1. Fartei-me de rir.

    Quanto à última parte, tratava-se de Educação Sexual. Qual é o mal, menina ?

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  2. Agora só precisas de ter tanbém o livro...dá imensas dicas para cenas de romances policiais, era o que a Patrícia Highsmith fazia.

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