quinta-feira, 28 de maio de 2015

Manipular a mente em 10 passos


Ao início deste mês, podem confirmá-lo, o gigante Noam Chomsky esteve em Portugal. Com grande pena, esta Encantadora não esteve lá, na Fundação Calouste Gulbenkian. O que não me impede me debruçar sobre a as ideias deste gigante de 86 anos, o qual afirmou (e continua a afirmar) que a opinião pública pode e é controlada segundo 10 princípios, extremamente simples. 
As formigas que quiserem permanecer no carreiro da ilusão reconfortante, oferecida em toneladas de informação pelos média, não leiam a seguinte lista: 

AS DEZ ESTRATÉGIAS PARA A MANIPULAÇÃO E O CONTROLO DA OPINIÃO PÚBLICA (adaptadas da lista de Chomsky):


 1) DISTRACÇÃOhá que fornecer aos carreiros de formigas montanhas de informações secundárias: gatinhos salvos pelos bombeiros, batalhas de chefs da alta cozinha, entrevistas a formiguinhas ao sol na praia e, pois claro, muitas, mas muitas peças sobre futebol. A segunda parte do plano é espremer, em blocos muito pequeninos, temas como arte, ciência e tecnologia, tornando-os meros intervalos entre as notícias ditas "importantes". Objectivo principal: consumirmos apenas no que não interessa à nossa evolução.


2) MÉTODO PROBLEMA-REACÇÃO-SOLUÇÃO: abrir as notíciário com um problema ou uma situação de emergência social (se não houver, há quem invente algum), lançando-se a semente para uma reacção pública em grande escala. Surge, então, uma formiga "salvadora", a qual impõe medidas para fazer desaparecer o problema. O caso mais gritante foi o nosso Governo, ao arrepio da "crise económica", fazer desmoronar os edifícios essenciais, como a Saúde, a Educação e a Justiça. O mais assustador  é que a "situação de emergência" já estava pronta a servir, bem como as respectivas "soluções".

3) GRADAÇÃOapanhados no sono da consciência, assistimos à  aplicação de medidas que, caso estivéssemos mais alertas, jamais deixaríamos passar como brancas nuvens, dada a impopularidade das mesmas. Gradativamente, de forma imperceptível, são-nos retirados os direitos. Quando acordamos, acordamos desempregados ou a trabalhar mais horas por cada vez menos contrapartidas salariais. "Portugal tem salários competitivos", disse uma vez Teixeira dos Santos. Na modesta opinião desta Encantadora, os salvadores da Pátria não passam de psicopatas sociais.

4) SACRIFÍCIO FUTUROpreparar a resignação das massas, com vista a aceitação de uma premissa, obviamente nefasta, como aquela de se cortarem nas pensões para assegurar a sustentabilidade da Segurança Social. A promessa deste e outros serem  "sacrifícios necessários" para o Futuro dá-nos a esperança (ilusória) de que os mesmos serão minimizados. Quando as vozes indignadas se silenciarem, já no próximo Inverno os indivíduos mais vulneráveis estarão em risco de morrer de frio. Uns por falta de pagamento da electricidade, outros porque passaram a viver na rua.

5) DISCURSO PARA CRIANÇASfalam-nos como se fôssemos crianças ou deficientes intelectuais, com base no discurso gasto de que "tudo irá correr bem caso fizeres assim ou assado". Se repararem, os nossos políticos, estejam ou não no poleiro, tratam-nos com insidioso paternalismo. São os beijinhos nas bochechas das feirantes, o sorriso+festinha na criancinha institucionalizada, os apertos de mão aos doentes deitados (há horas) em macas de corredor, actos que obtêm, em muitas formigas desatentas, uma resposta emocional compatível.

6) SENTIMENTALISMO E TEMORnuma das minhas viagens aéreas, um comissário de terra tratou-me, à vista de um carreiro de passageiros, como potencial terrorista. Colaborar civicamente na verificação das bagagens é uma coisa. Outra, é estar na porta de embarque e ser alvo de escrutínio. O funcionário, sem o saber, estava a tentar retardar a minha resposta emocional, atemorizando-me. Podia igualmente apelar ao sentimentalismo (a vida dos passageiros depende da colaboração de todos!), que o objectivo era o mesmo: controlar as minhas emoções inconscientes. Deu-se mal. Apresentei queixa à Companhia. Reagi quando não era suposto reagir. Saí do carreiro.

 7) VALORIZAR A IGNORÂNCIA E A MEDIOCRIDADEinverter a pirâmide do mérito e dar o máximo de tempo de antena a gente desqualificada, medíocre, inculta e ignorante. Realizar este intento é manter a capacidade crítica dos espectadores, principalmente dos mais jovens, no nível mínimo. A mediocridade dos habitantes da "casa dos segredos" foi o pequeno-almoço, almoço, lanche e jantar dos nossos alunos. Não admira que as escolas se deparem com gente tão estúpida, quanto arrogante. Há quem se gabe de nunca ter lido um livro.

8) DESPRESTIGIAR A INTELIGÊNCIAnão raras vezes,  o "cientista louco" e o "nerd", personagens-tipo da ficção televisiva/cinematográfica, são apresentados como inadaptados, anti-sociais e perigosos, no extremo do estereótipo. Ora, nenhum jovem quer ser visto como anti-social, pelo contrário. Desprestigia-se a racionalidade e o sentido crítico, apresentando-os como exemplos a não seguir. Se juntarmos a esse factor (a despretigiação da inteligência) ofertas educativas de baixa qualidade para os pobres de espírito, estes sentir-se-ão plenamente integrados no "sistema". A moda é ser ignorante. 

9) INCENTIVAR E INCUTIR A CULPAquando o fracasso bate à porta, a culpa vem logo atrás. Para acentuar essa auto-culpabilização, os média oferecem-nos, em prime-time, a visão espectacular de "gente gira". A celebridade, a riqueza, ou até mesmo a beleza, apresentam-se em regime de exclusividade para meia-dúzia de indivíduos. Aos restantes, cabe o enorme espaço da resignação, reservada às formigas que trabalham, trabalham e quanto mais o fazem, mais derrapam para o anonimato, tendo como bónus a depressão. Julgam estas formigas "terem feito tudo mal", ao invés de agirem como a celebridade X ou Y. Caras formigas,  a solução reside na rebelião contra a injustiça social e económica. 

10) MONITORIZARpara um dado esquema resultar, há que monitorizar constantemente os seus factores e variáveis. Os donos do poder, utilizam as redes sociais, os avanços nas áreas de psicologia e neurobiologia, entre outras ferramentas do foro das ciências, para anteciparem e controlarem os nossos comportamentos. Essas formigas (que se julgam gigantes), julgam que nos conhecem melhor dos que nós nos conhecemos a nós próprios. Até certo ponto, sim. 

O Encantamento para hoje: liguem a TV à hora do telejornal. À luz das ideias de Chomsky, observem o que se desenrola no écran como se estudassem um mundo totalmente diferente. Usem também o "filtro Chomsky" quando alguém quiser impor uma medida impopular, seja no vosso formigueiro, seja no formigueiro vizinho. Caras formigas: não sejam vítimas. Recusem-se a sê-lo. Basta pensarem de forma crítica acerca das ideias que querem impor-vos. Depois, ajam em conformidade. Uma dica final: comecem por um livro de reclamações. Qualquer um serve.

domingo, 24 de maio de 2015

O nosso Caderno Azul

«Eu costumava comprar esses cadernos quando ia a Lisboa. São muito bons, muito resistentes. A partir do momento em que começamos a escrever neles, nunca mais nos apetece escrever em coisa nenhuma.» Paul Auster.

Escrever à mão é bom. Nada é mais rápido do que a mão humana, quando se trata de fazer correr encantamentos à velocidade do pensamento. Escrevo à mão praticamente tudo - chego a escrever notas manuscritas antes de me sentar diante da tela branca de um futuro post. Parece algo de outros tempos - escrever textos à mão - mas faço-o e tenho um óptimo incentivo para tal: o meu caderno azul. Na verdade, não é apenas um, mas dezenas de cadernos cheios de notas íntimas, formulações de pensamentos, anedotas diárias...enfim, o meu "querido diário" tem a capa azul dos cadernos portugueses da Firmo, os mesmos referidos como jóias de estimação pelo escritor norte-americano Paul Auster. No seu livro, "A noite do oráculo", a personagem-escritor percorre as ruas de Brooklyn em busca do "caderno português". Feita a aquisição, e logo no dia seguinte, a loja do chinês que os vendia encerra sem qualquer explicação. Sidney Orr (o alter-ego de Auster), começa a escrever no caderno português e eis que a sua realidade, sob o misterioso efeito das linhas azuis, entra num labirinto de sonhos.  

Neste romance de Auster, o que era aparentemente linear, deixa de o ser. Cada página, uma vez escrita, inaugura uma miríade de mundos alternativos. No fundo, o "efeito caderno azul" de Auster é a metáfora do que é ser escritor - submeter-se à supensão das dimensões do tempo e do espaço, a realidade distorcida ao ponto de nos perdermos num labirinto de possibilidades.

http://www.loja.avidaportuguesa.com
O caderno azul da Firmo exibe um físico robusto, pela capa dura que o reveste. A encadernação é irrepreensível e as suas folhas, de uma gramagem equilibrada, espessas o suficiente para impedir a repassagem da tinta, sem chegar ao tacto grosseiro. Relançado pela Marca em Janeiro de 2012 na Paperworld, em Frankfurt, 60 anos após a sua criação, de objecto de mercearia de bairro elevou-se a caderno de culto. O blue note de Auster tornou-se no caderno mais português da América.
Um Encantamento a descobrir.
     I     LOVE   560

terça-feira, 19 de maio de 2015

Amanhãs que não cantam - sibilam

Só espera quem está desesperado. Eu não espero nada. Os amanhãs que cantam, como um dia disse o poeta, colidem frontalmente com as actuais circunstâncias. Portanto, o melhor é deixar de circular por uns tempos. Se calhar, até desaparecer.

Circular  24 horas sobre 24 tornou-se mais que cansativo - uma rotina sem objectivos. "Viver todo os dias cansa", escreveu um dia Pedro Paixão e só agora, no centro do turbilhão das circunstâncias, é que me cai a ficha e percebo a frase, antes julgada  frase fútil,  pura auto-comiseração. Olhem que cansa, cansa e muito.

Os meninos fazem exames. Os meninos batem uns nos outros e à medida que crescem, vão batendo mais e com ainda mais força. Já mulheres e homens, deslocam-se aos estádios de futebol e partem tudo. No dia seguinte, de ressaca, levam os filhos aos exames, os mesmos que também hão-de crescer agredindo-se uns aos outros, vandalizando outros estádios. Mantendo-se o padrão, eis que a selvajaria se instala no mapa genético das famílias. Apesar dos exames, das toneladas de horas de Matemática e Português, das reuniões de Conselhos de Turma por causa do aluno tal e tal (coitadinho, teve uma infância difícil, percebe-se que tenha assasinado a mãe quando ela quis tirar-lhe o telemóvel. Se passa de ano?, claro que passa!), após o corpo de intervenção formado por psicólogos escolares, pedopsiquiatras e professores exaustos ter esgotado todas as estratégias, redigido planos de acompanhamento e papeladas que não lembram ao demo, o córtex pré-frontal das massas vai, democraticamente, regredindo, e o que resta é o instinto do "ataca ou foge", o instinto do lagarto.

Nos amanhãs sem cantigas de amigo, milhares de lagartos e lagartixas irão deslizar sibilinamente pelas ruínas daquilo que foi o Marquês de Pombal. Vão rastejar da Avenida da Liberdade ao Rossio. Também aí, pouco restará, os cafés servirão sandes de lixo aos novos répteis. No Chiado, a escultura de Fernando Pessoa será substituída por um grande lagarto sentado. E onde dantes havia a representação da chávena de café, veremos um modelo miniaturizado de ser humano.

Antes que tal profecia se cumpra, vou comprar o meu bilhete para um lugar mais evoluído da Galáxia, pois conheço bem as lagartixas da minha terra e só de as imaginar crescidas e sentadas em mesas de escola, leva-me a fazer já as malas e enfiar-me no tubo de teletransporte. Quem quiser que venha e traga um amigo também. Mas depressa, a ameaça dos répteis está próxima. Tenham medo, tenham muito medo.

domingo, 17 de maio de 2015

António Zambujo sim, fado assim-assim


Cresci numa casa onde se escutava Carlos Paredes e António Chaínho (entre muitíssimos outros), portanto não se trata de negar a minha portugalidade, dado o título deste post. O que está em causa são factores como a pungência do tom fadista, a fatalidade algo doentia e, claro, o destino (fado) a que estamos sujeitos - por tudo e por nada, eis-nos despojados de vontade própria e entregues a um deus que, invariavelmente, escreve-o por linhas tortas. Ouve-se de vez em quando, até se gosta, mas insisto na dosagem homeopática. Muito fado é demasiado fado e nós, um dos povos mais depressivos do Sul da Europa, não precisamos exceder-nos em motivos para afogar mágoas no álcool ou nas drogas de farmácia.

Sendo regra, eu não possuir um único disco de Fado, a mesma traz consigo a excepção: António Zambujo. Mais que fadista, um trovador que, em meu entender (alguma formiga mais informada pode discordar) não teme influências de géneros, quer dos brasileiríssimos Chorinho, Choro-canção e Bossa Nova, da polifonia das vozes búlgaras ("Chamateia"), sem contornar o Cante Alentejano, não fosse António nado e criado em Beja.

António Zambujo Tem uma forma própria de acolher o género, inculcar-lhe um destino diferente, contemporâneo, no seu traço vocal mais ou menos intimista, muito, muito longe do registo esgoelado de alguns intérpretes do fado tradicional. Ele até pode cantar "Nem às paredes confesso", mas não me deprime, antes faz-me imaginar raparigas do Sul sentadas sob os sobreiros, entoando os seus amores proibidos. O Fado de António Zambujo não nos submete à tristeza, mas revela-nos como se pode aceitar a vida tal como ela é, sem arroubos de desespero.

Ontem à noite (16/05/2015) tive o privilégio de ver ao vivo António Zambujo. Apesar do concerto terminar com o tema "Guia", o qual me relembra o meu próprio fado, deitei-me imbuída de um sentimento de aceitação. Sem dramas de xaile negro.





 I    LOVE     560

quinta-feira, 14 de maio de 2015

A tortura do escorrega

Apesar de só ter entrado na escola em Janeiro, ela já sabia ler. E desenhava bem. Isso bastou. O carreiro de formiguinhas de bata cor-de-rosa uniu-se para dar uma lição à menina nova. Parecia fácil: era demasiado pequena para ter 6 anos. O carro do pai da menina também era pequeno. Pois, mais fácil não podia ser. 

Constituiu-se uma milícia, com um plano em três fases: 1 - Caso a professora elogiasse a menina nova, as formigas erguiam as antenas e entreolhavam-se com sorrisos maldosos, numa espécie de sinal  (a menina levou tempo a perceber a ligação entre esses dois fenómenos).  Fase 2 - tocava a campainha, o longo carreiro de formigas, do 1.º ao 2.º ano, seguia para  recreio, com as formiguinhas cor-de-rosa na dianteira. 

Era exactamente no recreio, com um simples escorrega de ferro e madeira, que a tal milícia se organizava em dois grupos: o primeiro obrigava a menina a subir os degraus do escorrega, enquanto que ao segundo cabia balançar-se na parte de baixo, tomando assim impulso para pontapear-lhe com força as pernas nuas. Fase 3 - Ameaçar: se contares, amanhã matamos-te! Em casa, a mãe, que nódoas negras são essas, fui eu que caí, mãe. Ela não queria morrer no dia seguinte. Os altos degraus de ferro custavam a subir. E elas eram muitas. Aí umas dez. 

A menina nova começou a relacionar a suas boas notas com a tortura do escorrega. Resolveu defender-se. Passou a ler mal, ao mesmo ritmo descompassado das colegas. Os desenhos, deixava-os a meio, não fossem ficar bonitos de mais. A mãe estranhou os maus resultados, foi à escola, fez perguntas à professora e esta, por sua vez, indagou as funcionárias que vigiavam o recreio. Sim, elas sempre tinham estado ali. Na verdade, enquanto decorria a tortura do escorrega, a menina via-as virar a cara para o lado. As formigas da milícia eram filhas de "gente bem", gente com dinheiro. Com o poder de tirar-lhes os empregos. Uma dela nunca mais apareceu. A directora do externato também castigou algumas das formigas cor-de-rosa. Nem todas, uns quantos cheques compraram silêncios e omissões. 

Hoje, ela ainda olha para um escorrega como se olha para para um objecto de tortura.  Basta um simples brinquedo para a crueldade ter um instrumento para se consumar. Quem diz brinquedo, diz arma. Diz bomba. Diz silêncio.

domingo, 10 de maio de 2015

A cozinheira de Salazar

A Cozinheira das Cozinheiras


Rosa Maria, a autora deste livrinho, logo na  introdução, não perde tempo a esclarecer-nos quanto ao statuts do caldo nas mesas portuguesas do Estado Novo: «É o primeiro prato de todas as mesas, e o único, quase sempre, da gente pobre». Mas não se fica por aí: «O caldo, nas mesas fartas, prepara o estômago para receber os pratos que se seguem.» Uma pérola, estas linhas de Rosa Maria, a cozinheira das cozinheiras do Regime Salazarista. 

Mais que um livro de culinária, "A cozinheira das cozinheiras" é um tratado sociológico dividido em centenas de receitas. Basta abri-lo ao calhas e salta-nos a receita do doce "espera marido", que ainda por cima pretende que se atinja um "açúcar em ponto de espadana". Seja lá o que isso for, parece moroso, quase um procedimento laboratorial.
No livro de Rosa Maria, todas as receitas que incluem animais não dispensam depenar-se primeiro a galinha, lavar os intestinos ao porco, chamuscar e limpar as vísceras ao pato e esta piéce de resistance que é embriagar perus com vinho branco antes da matança, embora com o toque de misericórdia de "ir entretendo esta embriaguez até à ocasião da morte, para que esta seja suave". Isto divide créditos com algumas séries policiais americanas. Mas Rosa Maria estava longe de ser uma mente criminosa, nem sequer um alvo dos actuais grupos de defesa dos animais. A nossa Rosa não passava de uma das "cozinheiras de Salazar", que, à imagem do ditador, admitia com simplicidade a tortura de seres vivos no local de trabalho (leia-se calabouços da Pide). E, como se deduz, manter a condição feminina de barriga encostada ao fogão, com um peru aos tombos pelo quintal.

Por falar em barriga, a contra-capa do livro também não nos desilude, quanto ao seu grau altamente educativo. Aqui, anuncia-se o próximo volume: "Fecundação, gravidez e parto", de um tal Ch. Vernau, "Livro indispensável a todas as mulheres, para que conheçam a sua nobre missão procriadora (...) um volume profusamente ilustrado, com gravuras a preto e a cores.» Brrrrr.

Este livro de culinária, com a chancela da Civilização Editora (outrora Livraria Civilização)  foi-me oferecido por piada, mas na verdade já experimentei algumas receitas. Saltei as partes malignas e obtive bons resultados. Quanto às formigas que não cozinham de todo, adquiram-no para atirá-lo às ventas de quem  se atrever a comentar "o bem que o doutor Salazar fez ao nosso país." O mesmo país onde os caldinhos dos pobres e os caldinhos dos ricos mantinham a boa ordem social. A bem da Nação.


I LOVE 560





sexta-feira, 8 de maio de 2015

Cabíamos tão bem naquele destino


Teus olhos devolveram-se à multidão,
 meu corpo, a esta cela de mar.
Logo agora, quando
 tão bem cabíamos naquele destino,
 duas linhas num desenho sem título.
Aconteceu um comboio partir distraído e assim
 viemos sentar-nos a este muro.
Em redor, um silêncio sem raízes.
Fizemos deslizar o desejo para a sombra,
Depois, veio a  encruzilhada
dois pedaços de carvão resvalaram do mesmo lume.
Antes da nossa viagem traída,
 éramos um só prodígio repartido em duas mãos. 
Feneceremos nesta foto sem deslumbre. 
Logo nós, que tão bem cabíamos naquele destino,
Duas linhas, apenas um rumo, traçado no espaço
 da folha branca, universal.

quarta-feira, 6 de maio de 2015

A orelha de Van Gogh e outros mitos

«A tua tarefa é descobrir o teu trabalho e, então, com todo o coração, dedicares-te a ele.» Buda.


Van Gogh / Auto-retrato com ligadura - Nacional Gallery

O que é um Mito? Algo próximo da lenda ou do conto de fadas. O dicionário Houaiss define o mito como uma «afirmação fantasiosa, inverídica, que é disseminada com fins de dominação, difamatórios, propagandísticos…». A ser assim, uma das características do mito é assemelhar-se ao mero boato: uma história que se espalha boca-a-boca para justificar algo inteiramente infundado.

Quando uma alminha profere a célebre frase: "Aquele/aquela é um/uma artista", muitas das vezes insinua que ele/ela é alguém com um estatuto à parte, infelizmente baseado nos tais mitos que rodeiam a arte e a vida dos seus produtores. O Encantamento proposto para hoje tem por alvo desconstruir 
4 mitos fundamentais, que extraí de um longuíssimo rol  de disparates. Ei-los:

Disparate número Um: os artistas vivem na pobreza e à beira da loucura
Algumas das amigas formigas terão uma história sobre um parente que decidiu abandonar o negócio da família para se tornar “artista”. O cenário é sempre o pior: nunca ter dinheiro para pagar as contas, vestir-se mal, comer pior e manchar o bom nome dos antepassados com atitudes excêntricas. Um dos episódios mais conhecidos da História da Arte (ainda é) o da  orelha de Van Gogh. Num momento de loucura cega, o pintor cortou o lóbulo da orelha direita e enviou a macabra encomenda a uma prostituta.  
Em Portugal existem artistas que vivem das suas criações. Admito: poucos. Mas existem. Pintores, escultores, actores, bailarinos e músicos, vivem das suas paixões e, que eu saiba, com as orelhas e a saúde mental intactas.

Disparate número dois a arte é cara, portanto só os ricos a podem comprar.
Van Gogh /Jarra com Margaridas e papoilas
Voltemos a Vincent Van Gogh. Sabemos que vendeu, em vida,  apenas um quadro, uma natureza-morta intitulada "Jarra com margaridas e papoilas". Se calhar por um preço irrisório - algumas das suas pinturas foram trocadas até por pratos de comida. A 4 de Novembro do ano passado, a pintura foi arrematada num leilão da Sotheby's pela quantia astronómica de 40 milhões de euros. Serve este apontamento para dizer que o investimento em arte não é, obrigatoriamente, um investimento ruinoso. Mais: pode até auxiliar uma jovem promessa. Neste ponto refiro um elemento fundamental: aconselhamento especializado. Não me canso de levar as mãos à cabeça quando vejo carreiros de formiguinhas adquirirem objectos de gosto e valor artístico duvidosos com vista a decoração da sala de visitas. A melhor alternativa (e talvez a mais barata), seria rumar  à “galeria perto de si”, pedir catálogos, ver a exposição patente no espaço, explorarem com o galerista as obras da reserva ou, tão-somente, solicitarem o tal aconselhamento. Acredito que, em 99% dos casos, saíam com uma produção artística que o tempo se encarregaria de valorizar. Poderá dar-se o caso dessa obra, desse tal “valor seguro” arrevesar-se com os tons das cortinas e da carpete? Sim, e daí? Mais vale ter uma boa  gravura de um jovem artista português em ascensão, do que uma natureza-morta pintada por um anónimo e que mais tarde qualquer herdeiro poderá incendiar, sem qualquer pingo de remorso, juntamente com os cortinados desbotados e a carpete puída.

A reboque do tema “valor seguro”, passemos ao disparate número trêsos artistas são pessoas materialmente desprendidas. Na grande maioria dos casos, a afirmação ajusta-se. Em Portugal, muito do teatro é suportado, em grande parte, pela boa vontade e voluntarismo de quem o faz. Mas a tendência geral é confundir desprendimento com ignorância financeira. Confunde-se o conceito de riqueza com o de abundância. Uma pessoa rica não será obrigatoriamente abundante, uma vez que a abundância inclui factores impossíveis de mensurar como o possuir e dar amor, gosto pela vida, ser bondoso, respeitado…Mas fiquemo-nos pelo mito da ignorância financeira. Charlie Chaplin, o criador da inesquecível personagem, "Charlot",  aos 11 anos, órfão e sem-abrigo, deambulava com o irmão pelas ruas de Londres a fazer pantominices para quem lhes atirasse moedas. Tratava-se de pura auto-aprendizagem financeira. Em adulto e ao 3º filme, já ganhava dez mil dólares por semana. Isto em 1916! Chaplin conseguiu, em vida, aquilo que muitos ainda sonham: abundância. Viveu para criar. Intensamente, com regras bastante próprias, mas com a inteligência financeira suficiente para prosperar. Muita dessa Inteligência ganha com a vida nas ruas.

Depois do que atrás ficou escrito, o disparate número quatro soa-nos como o mais ridículo de todos: a Arte não é um trabalho a sério.
A ideia feita, o preconceito em relação ao trabalho artístico, o lugar-comum que enfia a arte no mesmo saco de hobbys como a jardinagem ou o coleccionismo, são exemplos de como um mito pode persistir com a cumplicidade de todos os membros de uma sociedade. Ainda existe a fórmula, repetida desde a Revolução Industrial, pela qual é obrigatório trabalhar com horários rígidos e a toque de caixa. É claro que a iniciativa própria deve aliar-se a um alto grau de disciplina e trabalho árduo para se transformar em royalties. Mas isto é puro bom senso, nunca a admissão de uma forma de escravatura. Os artistas não têm horários, têm disciplina. Além de formação adequada e paixão pelo que fazem. Um hobby também é apaixonante e possivelmente lucrativo. Mas realizar um filme ou encenar uma peça com limitações orçamentais, com o risco acrescido de ser um falhanço, é tão ou mais stressante quanto ser corrector da bolsa de valores. Existe sempre o risco de um crash monumental que inclui a direcção da Companhia, a produtora, o trabalho dos actores e dos técnicos, apoios e patrocínios, a vida familiar de todos e, em último caso, a saúde dos indivíduos.

Alguns de vocês podem até achar que estes mitos já não têm lugar na era contemporânea, quando se encara a Arte enquanto processo civilizacional, fundamental para a experiência e evolução humanas. Decerto que a afirmação da criatividade e do talento, o reconhecimento da importância da prática artística e a valorização das criações, desde as artes plásticas às artes de palco, percorrem transversalmente todos os sectores da sociedade civil. Mas a minha experiência junto do “homem da rua” diz-me que uma ditadura de mais de 40 anos, ligada ao analfabetismo cultural, deixaram marcas indeléveis no corpo da sociedade portuguesa. Endeusam-se alguns artistas, ao mesmo tempo que se implora por bilhetes à borla para teatros, salas de cinema e museus. Há que sair deste carreiro e entrar, definitivamente, no século XXI.

domingo, 3 de maio de 2015

A minha vida sem Bordallo

http://pt.bordallopinheiro.com/
A folha de couve. As andorinhas. O Zé Povinho. Rafael Bordallo Pinheiro (1846-1905), mestre do desenho humorístico (hoje diríamos cartoonista ), fundou a 30 de Junho de 1884 a Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha. Dali saíram centenas e centenas de modelos de cerâmica artística, todos criados pelo seu génio. As peças do imaginário,  de inspiração naturalista, entraram nas casas dos Portugueses pela porta do orgulho - lembro-me de muita gente, familiares e amigos, mostrarem as loiças com a marca "Bordallo Pinheiro" inscrita na base, assegurando o visitante que, naquela casa (portuguesa com certeza), não se aceitavam imitações.

Em 2008 visitei a fábrica caldense, num dos piores momento da sua existência. Pareceu-me um espaço abandonado de um dia para o outro, devido a ameaça de bomba. Moldes, utensílios, desenhos, tudo quieto nas grandes mesas. À espera de um resgate que nunca mais vinha. Ao ver a loja aberta, adquiri um serviço de pratos; não fosse a fábrica fechar de vez e eu ficar sem o meu Bordallo de honra à vista no meu louceiro. Confesso: aproveitei  a semi-desertificação do lugar para meter o nariz em tudo. Por ali deambulei por mais de uma hora. Imaginei que tipo de operários possuíam a capacidade de trabalhar naquelas peças. Apenas alguns e muitíssimo especializados. Felizmente, as sua mãos amorosas regressaram, graças a um grupo privado (e não ao Governo, esse trapalhão, quando se trata de preservar Património), o qual recuperou a fábrica, assegurando a continuidade da produção. 

Não é necessário ir às Caldas da Rainha para conhecer a extensíssima obra de cerâmica de Bordallo, no seu esplendor criativo, provocador e de uma excentricidade ímpar. Em Lisboa, em pleno Campo Grande, existe o Museu Bordallo Pinheiro, uma das jóia museológicas da Câmara Municipal.

Todos os dias tomo as minhas refeições num dos meus prato Bordallo Pinheiro. Até uma fatia de pizza requentada no microondas ganha ali um outro estatuto. Quando a alma se alimenta de coisas belas e genuínas, comer fast-food torna-se na menor das nossas preocupações.
I  L O V E  5 6 0

sábado, 2 de maio de 2015

O bosque das mil visitas

          O b r i g  a d a,   f o r m i g u i n h a s!

Esta Encantadora de Formigas ficou encantada com o volume de carreiros de formiguinhas que visitaram este blog, num total de 1000 visualizações! Aumentou, também, a responsabilidade de continuar a desencaminhar as minhas queridas amigas dos seus carreiros (alguns deles bem entendiantes!). Caso tenham sugestões de encantamentos de "desencaminhar", escrevam-nas com letra bonita e depositem-nas em formiganocarreiro49@hotmail.com, uma caixa de correio guardada por um dos meus gnomos de confiança. Claro que também me coloco à disposição para responder aos eventuais comentários às minhas mensagens.
Bom, agora regresso ao meu recanto secreto, no bosque mais perto de si! 

sexta-feira, 1 de maio de 2015

O Homem da Enxada

Millet- O Homem da Enxada (1862) - 80x99cm

A IDEIA DO TRABALHO COMO VIRTUDE PROVOCOU UM ENORME ESTRAGO (Bertrand Russel - 1872-1970)


Hoje, minhas queridas e laboriosas formiguinhas, convido-as a passear fora do nosso carreiro para que observem comigo esta pintura de Jean-François Millet, "O Homem da Enxada".  O ideal deste pintor, da vertente Realista / Naturalista, era o de registar as personagens e ambiências do trabalho rural, enobrecendo-as enquanto lhes retirava qualquer romantismo bucólico. Com esta imagem do trabalho braçal, rude e sem outro auxílio salvo o da enxada neolítica, Millet expõem-nos, não somente um momento de suspensão do esforço, como todo um contexto em que é preciso trabalhar, trabalhar arduamente por cada punhado de trigo. Repare-se nas mãos apoiadas no cabo da enxada, na figura dobrada sobre a terra e, no que mais me impressiona: a boca. Uma boca de lábios entreabertos, onde se adivinha a respiração entrecortada pelo cansaço. Por que motivo me impressiona tanto a boca do "Homem da Enxada"? Porque aquela é a minha boca, a tua boca, a nossa boca. Os nossos lábios abertos, numa súplica de água e pão.

Como gostava, caras formigas, de elevar-me de alegria neste dia de cor amarela, o amarelo das coroas de flores entrelaçadas, algures no 1.º de Maio da minha infância, também um dia de celebração do trabalho vivificante da Natureza. Mas hoje deparo-me com o "Homem da Enxada" de Millet e reflito: a nossa visão do trabalho é tudo menos uma visão racional. Pela lei da evolução das sociedades (e não sou eu que o afirmo), as horas de lazer, destinadas à criação livre, constituiriam hoje a maior fatia do nosso tempo. Vejamos: usamos grande parte da nossa vida, uma vida à partida destinada à co-criação do Mundo nos seus infinitos aspectos, em tarefas especializadas. Mais: a troco de moedas que em muito nos são sonegadas. Não, nada disto é  racional. É quase uma atitude supersticiosa perante o trabalho: aceitamos a ilusão de termos sido criados criados para trabalhar, caso seremos punidos com a pobreza e a fome.

Mas basta ver o panorama actual, de pobreza e fome generalizadas, para se ter a noção da dimensão real de tal superstição, como se não bastasse inflamada por afirmações bárbaras, como aquela do "Ai, aguentam, aguentam!". Lembram-se?

 Chegou o momento de citar Agostinho da Silva
«O homem não nasce para trabalhar, nasce para criar, para ser o tal poeta à solta»
O "Homem da Enxada" de Millet não escreve nem lê poesia. Aguenta a jorna agarrado à enxada, aguenta-a até ao final dos tempos, porque assim o desejam os bárbaros, os mesmos que ainda crêem naquela tristemente famosa frase nazi: "o trabalho liberta".