sexta-feira, 20 de maio de 2016

Venham mais cinco...mil!




Após um ano a Encantar e a desviar formigas dos seus carreiros, dou-me por feliz! Cinco mil formigas desviadas, é o que diz o medidor de leituras. Cinco mil formigas, às quais prestei os meus serviços grátis de Encantadora (diplomada), ajudando-as, na medida do possível, a libertarem-se da mais diversa ordem de carreiros. O maior de todos? O do  pensamento único.

Obrigada, muito obrigada pela preferência. Prometo continuar alegremente a semear pontos de interrogação na relva, para vos obrigar a parar, a olhar e a desviar a caminhada. Prometo continuar a preparar e a repartir encantamentos, com o maior número possível de aplicações. 
E se houver reclamações quanto à ineficácia de alguma mezinha, conselho, verso ou prosa descuidada, façam favor de enviar os vossos comentários e sugestões - sou obrigada a admitir fazerem-me imensa falta! 

Fico à vossa espera, Amigas formigas, neste bosque onde as árvores sussurram perguntas e os rios levam consigo as respostas. 

Venham mais cinco mil!



sábado, 14 de maio de 2016

O estranho caso da tia Olívia e outros mistérios

Designados por "sapatos de senhora", aquelas orquídeas com aparência de concha (ou saco) revelam-se tão sensíveis quanto o pezinho da Cinderela. A minha avó tinha uma estufa caseira cheia deles. A mesma avó dos lendários "dedos verdes" pelos quais as plantas "pegavam de galho" (sem quaisquer raízes, portanto), fosse na terra, fosse num simples buraco no muro de pedra.

O jardim da minha avó era espantoso, fruto dessas tais mãos mágicas, as mesmas que prescindiam de utensílios sofisticados - bastava uma faca de cozinha, uma simples faca romba e oxidada para plantar uma árvore ou um amor-perfeito.  Havia quem lhe invejasse o dom. Aqui inicia-se a história, com a visita da tia Olívia, cujo espanto se exprimia sempre da mesma forma: 

Orquídea Paphiopedilum sp

"Ai, Ester, como os teus sapatinhos estão lindos! Como é que tu fazes?" E acrescentava: "As minhas flores não crescem!". 

A minha avó estremecia e apressava a caminhada da irmã pelo jardim, então frondoso.

De nada valia encurtar a visita da tia Olívia. No dia seguinte, as cabeças dos sapatinhos caídas para o lado reflectiam a passagem de um autêntico furacão de mau-olhado. E com estes também havia rosas desmaiadas, jarros brancos agora amarelecidos, antúrios moribundos e cattleyas ressequidas como que  fulminadas por raios.  Mau-olhado, olho-gordo, quebranto, dizia-se. 

A tia Olívia, na sua figura insuspeita (muito menos sem o saber) tinha o poder de aniquilar um jardim botânico inteiro. Os olhos daqueles dez réis de gente escondiam um poder devastador. Mas a minha avó, verdadeira Encantadora de Plantas, lá conseguia repor o viço daquela flora murcha munida da sua faquinha e dos seus dedos, repito, dedos verdes. Até nova visita da irmã Olívia ("Coitada da Olívia! Não sabe o que faz"), os sapatinhos floriam e cresciam, com sorte, até o Natal. Altura em que os mais bonitos iam ladear, em solitários de cristal, o bercinho do Menino Jesus.

Ainda há muito por descobrir acerca do poder da Mente humana. Existem zonas cerebrais tão longínquas quanto uma estrela a milhões de anos-luz. A tia Olívia, que eu saiba muito pouco dada a pensamentos profundos, era afinal detentora de um poder sobrenatural. Vai-se lá saber como. Ou porquê. 

Quanto à avó Ester, os dedos mágicos não só ressuscitavam plantas, como também operavam os pintainhos encontrados inchados e como mortos no chão da capoeira. Com uma faca de cozinha (curiosamente, o mesmo utensílio usado nas plantas), abria as barrigas dos bichos em busca do mal. Imagino os dedos ossudos e ágeis retirando o entulho depenicado em lugar do milho, para em seguida coser as barrigas uma a uma, numa espécie de linha de montagem, com agulha passada na chama do fogão. A minha mãe lembra-se de ver os pintos saltarem da mesa da cozinha e irem à sua vida num cai-te-não-caias pós-operatório. Um ao outro podia não sobreviver. Hoje em dia morreriam todos.

Descendo de uma Encantadora de Plantas e pintainhos doentes, que por sua vez descende de outras Encantadoras, cuja aparência discreta escondia um ou vários dons. Construtivos ou destrutivos.

No meu caso em particular, apesar de destruir carreiros cépticos de formigas, para as quais os limites de percepção do Mundo estacam nos 5 sentidos, considero-me uma Encantadora Construtiva. Também uso uma faca oxidada e romba para operar o inoperável e ressuscitar flores mortas. É quanto basta.