segunda-feira, 11 de julho de 2016

Anjos no desemprego


Não acredito em anjos, mas que eles existem, existem.

Relembro os anjos de Wim Wenders.  Encostados aos ombros dos leitores de uma biblioteca em Berlim, escutam o redemoinho dos pensamentos humanos. O filme?  "As Asas do Desejo", obra-prima do cineasta alemão e vencedora do Festival de Cannes, em 1987. Aqueles anjos apenas e tão-somente, escutam. Numa postura séria, porém compassiva. Ouvir para tentar perceber, para tentar compreender. A dada altura crescemos e ao mesmo tempo deixámos de os ver. Porquê?

«Quando a criança era criança
andava a balançar os braços,
desejava que o riacho fosse rio e
que o rio fosse torrente e
poça d'água, o mar

Quando a criança era criança,
não sabia que era criança,
tudo era vida e
a vida era uma só!»

Suspensos nos prédios sobranceiros à cidade de Berlim, Damiel e Cassiel captam os diálogos interiores de todos nós.  E observam. E acompanham. Apenas interferem no momento que precede a tragédia. Ou colocam a cabeça do moribundo no seu colo, quando a mesma se desenlaça. A função dos anjos do cineasta Wenders, figuras mudas nos seus sobretudos de Inverno, é registar as Eras e, mais uma vez, compreender de que modo a humanidade usa o tempo legado sobre a Terra, como combate e ama, como desafia a morte e abraça a vida.
As Asas do Desejo, 1987

Numa versão mais literal, temos o Anjo cristianizado que ampara e protege. Não se limita a escutar os pensamentos, como também nos sussurra ao ouvido antes de atravessarmos a rua. No instante seguinte passa por nós um camião desgovernado. Foi Deus, dizemos. Mas foi o Anjo, o anjo-da guarda que nos segura à beira do precipício. O anjo-fada Oriana, que tendo perdido as asas (mor do seu egoísmo), mesmo sem elas atira-se ao vazio para salvar uma velha cega. Sophia de Mello Breyner Andresen, o anjo da poesia.

Certa Encantadora de Anjos disse-me: os anjos choram. E choram porquê? Fazemos mal a nós próprios por simples sonegação da sua presença. Esquecemo-nos deles quando mais precisamos dos seus sinais, dos seus murmúrios de aviso trazidos pelo vento que agitam as folhas nos ramos. Quando o luar de Junho se levanta, a sombra do Anjo atravessa o disco branco nós, incautos, não o vemos. O nosso olhar está focado em tudo, menos no que acontece acima da linha do horizonte. Enquanto fazemos deslizar os dedos pelos nossos écrans tácteis, um Anjo espreita  sobre o nosso ombro. A tentar compreender o motivo de tanto fascínio. A ouvir sem entender.

Estes anjos estão todos no desemprego. Sentem-se substituídos por deuses menores.

Sentado numa biblioteca ou à uma mesa de um café,  choramos mágoas e arrependimentos. Enquanto isso, filas e filas de anjos desempregados e deprimidos dão a volta às esquinas infinitas do Tempo, aguardando um sinal. O nosso sinal: vem, preciso de ti. Preenche-me de Amor.

De regresso ao filme de Wenders, apenas as crianças percebem a presença dos anjos. Aliás, o filme tem início com a voz de Damiel (Bruno Ganz) a recitar "Lied Vom Kindsein" - Canção da Infância, de Peter Handke:

(...)
Quando a criança era criança,
era o tempo destas perguntas:
Porque eu sou eu e não tu?
Porque estou aqui e não ali?
Quando começou o tempo, e onde termina
o espaço? Será que a vida sob o sol nada
mais que é um sonho? Será que o que vejo
escuto e cheiro não é mais do que uma miragem
do mundo anterior ao mundo?
Será que o mal realmente existe
e pessoas realmente más?
Como é possível? Eu que sou eu, não existia
antes de existir e que alguma vez eu,
aquele que sou não serei mais quem sou? 
(...)
Quando a criança era criança
arremessou uma lança de madeira contra uma
árvore ainda balança na árvore até hoje.»

São as crianças, as mais pequenas, ainda a contratar os anjos. Sei de uma que ficava a olha para o ar e, de repente, apontava para algo invisível: está ali! Está ali! Um dia permiti-me olhar na direcção do pequeno dedo. E vi-o. Sim, vi-o. Usava um sobretudo escuro e olhava-me com amor.

Os meus anjos ainda choram pelo desejo de me serem úteis. São as asas do desejo que adejam em meu redor, o vento através das folhas, o suspiro de um velho no banco de jardim, o ruído da janela que se abre sobre o mar imenso. O Antes, o Agora e o Depois. O Devir.  Quando tudo era Vida e a vida era uma só. Quando pessoas e anjos eram apenas um. 

Caras amigas formigas: estamos sempre a tempo de sairmos do carreiro e elevar os olhos dos nossos écrans tácteis. Desse encantamento que nada traz de religioso, apenas uma fraca compensação por termos banido os anjos dos nossos abraços. Quando o nosso olhar se cruzar com o anjo à nossa mesa (Jane Campion), contactaremos, enfim, com todo o Universo.


domingo, 19 de junho de 2016

Decidir num piscar de olhos

Há coisas que só a inteligência é capaz de procurar, mas que por si mesma nunca achará. E essas coisas só o instinto as acharia, mas nunca as procura.  

Henry Bergson

A literatura pseudo-científica, mascarada de literatura de auto-ajuda (a propósito, se quiserem releiam "Eu, Sócrtaes, Freud e Bridget Jones") forjou receitas para quase todos os nossos comportamentos. Sem esquecer os sites lifestyle, autênticos manuais de bricolage emocional  que pretensamente nos "ajudam" a consertar atitudes, a colar discursos malfeitos, a substituir lâmpadas na noite da alma, como se esta fosse um apartamento a precisar de remodelações até à eternidade.

É o império do ruído em todo o seu esplendor. Um ruído de fundo que, a meu ver, somente baralha e atrapalha. Porque nos impede de pensar ou, pior, faz-nos tomar o ser cultural pelo Self junguiano. Tomar o mapa pelo território. 

Que território é esse? O lugar onde cabem cidades extraordinárias, à imagem de "As Cidades Invisíveis", obra-prima do Italo Calvino. Lugar onde campos, savanas, florestas e montanhas coabitam no mesmo espaço e no mesmo tempo, sítio onde cabe o brilho de várias luas e o sol nasce para se pôr, ao cabo de minutos, como no planeta do "Principezinho" de Saint-Exupéry. Como catalogar tais lugares? Nem os filósofos a tal se atrevem. Nem os teólogos. Muito menos os sábios.

Como rotular, demarcar, erguer ou alargar fronteiras quando é ela, a força vital, aquela que realmente nos conduz, na sua loucura mais bela, na sua verdade mais terrível, ao âmbito da verdadeira Vida? Existe a desorientação, pois existe. Se existem livros capazes de nos fornecer algumas pistas? Decerto. Mas se me derem a escolher entre um badalado livro de auto-ajuda e um outro, de Herberto Hélder, caminho muito melhor pelas metáforas deste último do que bebo do caldo insípido do primeiro. 

Herberto Helder - foto do espólio de Herberto Lacerda
Na esteira da frase de Henri Bergson (1854-1891), "a intuição caminha na direcção da vida", entre o intelecto e a apreensão intuitiva, aposto mais nesta última.

E a propósito dos momentos de pré-cognição, os insights (intuições) que todos nós temos e apenas alguns de nós aproveitam, fale-se de um livro de Malcom Gladwell, "Blink!- decidir num piscar de olhos". Logo a abrir conta-nos como certa escultura comprada por um grande museu revelar-se-ia, na verdade, um falso. Foi em meros segundos de observação (num piscar de olhos) que alguém intuiu a suposta fraude. Isto, após anos de observações com microscópios avançados comprovando ao milímetro a antiguidade da obra!

Por vezes a informação em demasia desvia-nos do olhar fresco, próprio da criança ainda imune a tanto ruído, assaz inútil. Ou do olhar experiente de homens e mulheres, os quais durante décadas observaram esculturas antigas e assim conseguem distinguir, num piscar de olhos, a obra genuína da construção falsa.

Os livros, sim, mas nem todos. Os escritores, sim, mas nem todos. O mesmo é válido para os milhares de opinion-makers, cujas vozes dogmáticas vão reunir-se ao carrossel colorido das imagens, 24 horas sobre 24 horas. Por fim, eis-nos exaustos e atrapalhados com tanta informação. E no mais pleno vazio existencial.

Os budistas praticam a arte de "trazer a mente a casa". Basta sentar-nos e respirar, durante um minuto, no chamado "minuto de atenção plena". E no silêncio da alma escutamos as respostas que aguardam por todas as nossas perguntas.
Palavra de Encantadora.

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Venham mais cinco...mil!




Após um ano a Encantar e a desviar formigas dos seus carreiros, dou-me por feliz! Cinco mil formigas desviadas, é o que diz o medidor de leituras. Cinco mil formigas, às quais prestei os meus serviços grátis de Encantadora (diplomada), ajudando-as, na medida do possível, a libertarem-se da mais diversa ordem de carreiros. O maior de todos? O do  pensamento único.

Obrigada, muito obrigada pela preferência. Prometo continuar alegremente a semear pontos de interrogação na relva, para vos obrigar a parar, a olhar e a desviar a caminhada. Prometo continuar a preparar e a repartir encantamentos, com o maior número possível de aplicações. 
E se houver reclamações quanto à ineficácia de alguma mezinha, conselho, verso ou prosa descuidada, façam favor de enviar os vossos comentários e sugestões - sou obrigada a admitir fazerem-me imensa falta! 

Fico à vossa espera, Amigas formigas, neste bosque onde as árvores sussurram perguntas e os rios levam consigo as respostas. 

Venham mais cinco mil!



sábado, 14 de maio de 2016

O estranho caso da tia Olívia e outros mistérios

Designados por "sapatos de senhora", aquelas orquídeas com aparência de concha (ou saco) revelam-se tão sensíveis quanto o pezinho da Cinderela. A minha avó tinha uma estufa caseira cheia deles. A mesma avó dos lendários "dedos verdes" pelos quais as plantas "pegavam de galho" (sem quaisquer raízes, portanto), fosse na terra, fosse num simples buraco no muro de pedra.

O jardim da minha avó era espantoso, fruto dessas tais mãos mágicas, as mesmas que prescindiam de utensílios sofisticados - bastava uma faca de cozinha, uma simples faca romba e oxidada para plantar uma árvore ou um amor-perfeito.  Havia quem lhe invejasse o dom. Aqui inicia-se a história, com a visita da tia Olívia, cujo espanto se exprimia sempre da mesma forma: 

Orquídea Paphiopedilum sp

"Ai, Ester, como os teus sapatinhos estão lindos! Como é que tu fazes?" E acrescentava: "As minhas flores não crescem!". 

A minha avó estremecia e apressava a caminhada da irmã pelo jardim, então frondoso.

De nada valia encurtar a visita da tia Olívia. No dia seguinte, as cabeças dos sapatinhos caídas para o lado reflectiam a passagem de um autêntico furacão de mau-olhado. E com estes também havia rosas desmaiadas, jarros brancos agora amarelecidos, antúrios moribundos e cattleyas ressequidas como que  fulminadas por raios.  Mau-olhado, olho-gordo, quebranto, dizia-se. 

A tia Olívia, na sua figura insuspeita (muito menos sem o saber) tinha o poder de aniquilar um jardim botânico inteiro. Os olhos daqueles dez réis de gente escondiam um poder devastador. Mas a minha avó, verdadeira Encantadora de Plantas, lá conseguia repor o viço daquela flora murcha munida da sua faquinha e dos seus dedos, repito, dedos verdes. Até nova visita da irmã Olívia ("Coitada da Olívia! Não sabe o que faz"), os sapatinhos floriam e cresciam, com sorte, até o Natal. Altura em que os mais bonitos iam ladear, em solitários de cristal, o bercinho do Menino Jesus.

Ainda há muito por descobrir acerca do poder da Mente humana. Existem zonas cerebrais tão longínquas quanto uma estrela a milhões de anos-luz. A tia Olívia, que eu saiba muito pouco dada a pensamentos profundos, era afinal detentora de um poder sobrenatural. Vai-se lá saber como. Ou porquê. 

Quanto à avó Ester, os dedos mágicos não só ressuscitavam plantas, como também operavam os pintainhos encontrados inchados e como mortos no chão da capoeira. Com uma faca de cozinha (curiosamente, o mesmo utensílio usado nas plantas), abria as barrigas dos bichos em busca do mal. Imagino os dedos ossudos e ágeis retirando o entulho depenicado em lugar do milho, para em seguida coser as barrigas uma a uma, numa espécie de linha de montagem, com agulha passada na chama do fogão. A minha mãe lembra-se de ver os pintos saltarem da mesa da cozinha e irem à sua vida num cai-te-não-caias pós-operatório. Um ao outro podia não sobreviver. Hoje em dia morreriam todos.

Descendo de uma Encantadora de Plantas e pintainhos doentes, que por sua vez descende de outras Encantadoras, cuja aparência discreta escondia um ou vários dons. Construtivos ou destrutivos.

No meu caso em particular, apesar de destruir carreiros cépticos de formigas, para as quais os limites de percepção do Mundo estacam nos 5 sentidos, considero-me uma Encantadora Construtiva. Também uso uma faca oxidada e romba para operar o inoperável e ressuscitar flores mortas. É quanto basta.




domingo, 10 de abril de 2016

A arte de bem jardinar

Uma varanda, jardim suspenso sobre a estrada. Adquiridas as flores em vasos provisórios, falta distribuí-las pelos canteiros. Também já temos a esta terra sem perfume a terra -  mesmo assim, terra que  entranha nas unhas, mas não suja por ser terra. O fertilizante é artificial, mas funciona, diz quem o vendeu a bom dinheiro. Preparamos o dia de jardinagem: atapetamos as lajes com jornais agora sem notícias; calçamos as luvas, abrimos a saca de terra... afinal cheira mesmo a terra! O ar preenchido pelo canto dos pássaros conforta-nos pela chegada da Primavera, genuína e democrática. Chega a todos, mesmo a estes jardineiros, donos do minúsculo jardim urbano suspenso sobre a rua demasiado movimentada, demasiado poluída...que importa? É o nosso jardim.

Ah, pois, a saca de terra, o ancinho e a pá que parecem de brincar, mas servem. Estas flores vieram de mãos de jardineiros autênticos, os quais as preservaram, estimadas nas cores e cuidadas no viço nos viveiros de origem. Flores e plantas que acarinhamos, que agora transplantamos com cuidados de cirurgião para os canteiros de plástico. Passam as horas, nem damos por elas. As flores tomam os seus devidos lugares no jardim suspenso sobre a avenida. Regam-se, entre palavras murmuradas, pois às plantas falamos com amor e assim florescem saudáveis. Em cada manhã, descerradas as cortinas, ei-las, céleres no desabrochar dos botões. Rosas, sempre-noivas, maravilhas, amores-perfeitos, ou então as de nomes mais complexos, como calachoés, falanopsis, oleandros, cinerárias...orgulhamo-nos de todas, apresentamos-as aos amigos, como se fossem família ou aquelas coisas de estimação que nos recordam a juventude.

Certa noite há ventania que nos desperta. Voltamos a dormir - a Primavera protege todos os seus filhos e não vai ser uma aragem que os irá ferir ou matar. Descerradas as cortinas na manhã seguinte, temos a impressão de ter havido um raid aéreo sobre a nossa plantação. Terra vertida, entornada dos canteiros, flores despidas, quebradas nos talos pelas unhas do vento. Flores geladas pelo súbito fragor de uma invernia inesperada. Com o coração pesado, limpamos o jardim, cortamos aqui e ali, até cortarmos quase tudo, um botão ou outro resistiu. Contudo, meia-dúzia de sobreviventes não chegam, não enchem, não inspiram, não se apresentam a ninguém. Aguardam apenas um novo tempo de morrer.

Passado o estupor paralisante do momento, contamos o dinheiro, voltamos aos viveiros e às conversas de como se faz com os antúrios, as rosinhas e os brincos-de-princesa. Regressamos à varanda devastada e à jardinagem forçada. Atapetamos o solo com jornais ainda por ler. Há que permanecer nos trabalhos do jardim. Há que resistir às surpresas. Aos súbitos Invernos da alma. Há que persistir no amor. Há que, eternamente, florescer.

sábado, 19 de março de 2016

Quando o telefone toca...

...é preciso atender? Não. Primeiro, atente-se na novidade daquele número no visor. Sendo desconhecido, coloca-se o bloco em modo silencioso, deixando-o estrebuchar por dentro as vezes que forem necessárias. Porque, aviso de antemão, aquele número misterioso irá aparecer todos os dias, a todas as horas, mesmo nas mais impróprias, como na pausa do almoço ou no tempo de retiro após o jantar. Mas vem um dia e perguntamo-nos - e se for o príncipe encantado? Ou alguém de direito a dar em doido para conseguir entregar-nos alguns milhões...bom, imaginados todos os cenários, caímos na tentação e...Alô? 

Voz de secretária: 
- Bom dia, estou a falar com a senhora professora doutora formiga fulana de tal?
- Sim é a própria...
- Senhora professora doutora formiga fulana de tal, bom dia, como vai?
- Bem, obrigada...
- Óptimo. Senhora professora doutora formiga fulana de tal, o meu nome é sicrana e estou a ligar-lhe para saber se já conhece...
Segue-se uma ladainha de perguntas e respostas, as últimas dadas em tom seco, porém educado: não, não quero, não estou interessada, eu já sei, sim, conheço, mas não, não estou interessada....
- Muito bem senhora formiga professora doutora fulana de tal, tenha um bom dia.
Antes que o diabo esfregue um olho e nos faça desleixar as prioridades, enfiamos o número na lista de "números filtrados". Tal não significa que nos próximos dias, nas próximas semanas e - sei do que falo - durante mais de um mês, o telefone deixe de mostrar, até o vómito nos sair pelos olhos, os 9 dígitos amaldiçoados. "Tem 21 chamadas não atendidas". Oh, infeliz, formiga, ainda te iludes que entre essas chamadas perdidas encontra-se alguma boa nova?  Milhões a chegar, mais o príncipe, o pacote inteiro de felicidade? Claro que não! São 21 chamadas do mesmo número. Pensas: deixá-los cansarem-se. Mas és tu quem fica exaurida, pois o número intromete-se na tua rotina, surge no visor até cederes, até te dobrares à vontade da menina do Call Centre. Em certo momento de maus fígados (pode acontecer a qualquer um), atendes. Antes de alguém proferir o senhora doutora formiga professora como está, atiras-te à goela do pobre maçador: olhe, coloque aí, escrito num painel de 20 metros: esta senhora doutora formiga não quer comprar nada! 
- Mas, senhora professora doutora formiga fulana de tal, já conhece os nossos produtos?
Aqui, os músculos retesam-se, os olhos engatilham cada qual a sua pistola, os dedos que agarram o bloco falante formam uma garra em tom lívido e finalmente estala o verniz da urbanidade:

UM PAINEL DE VINTE METROS! OUVIU-ME BEM?
Clic.

Esta vossa Encantadora nunca dá o seu número de contacto a entes desconhecidos. O mesmo nunca constou de qualquer lista telefónica. Não é do domínio público, ponto final. Mas "eles" têm-no. Não sabemos como nem quando nem onde, mas obtiveram-no. Para usá-lo. Abusá-lo. E maçar-nos. Algumas empresas pensam, erradamente, estar na vanguarda do telemarketing. Pois, não, não estão. Andam mas é a reboque da velha técnica de vencer-nos pelo cansaço, nascida nos anos 20 do século passado com a Ford a contratar domesticas para vender automóveis pelo telefone. 

A sugestão, em alta voz, do painel de 20 metros, teve de certezinha o impacto desejado. 
Acabou-se.
Perceberam a força deste Encantamento? Sim?  Afinem a garganta e apliquem-no.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Trabalho Sombra - pagar para desumanizar


Começo por um exemplo típico: certa formigas sai do local de emprego / creche / ginásio e dirige-se ao supermercado de automóvel. Pelo caminho, encosta no posto de gasolina. Serviço onde dantes existiam funcionários (mal) pagos para encher o depósito. Como a base actual é cortar nos empregos (mesmo nos de salário mínimo),  é o cliente a substituir a pessoa entretanto dispensada. Podemos até sofrer de artrite, tendinite, cataratas e ter uma criança a berrar de fome agarrada às penas: somos nós a retirar e a por a mangueira no descanso e a deslocar-nos à caixa de pagamento. Por vezes com dois ou três formigas em fato-macaco sentadas em botijas, ocupadas a jogar à bisca. Que querem? O trabalho não é deles. Ou seja, é nosso. Pela mesma lógica, não tendo pago, nem ao funcionário ausente, nem à nossa pessoa,  trabalhamos de graça para a empresa petrolífera. Mais: chegamos a pagar por isso! 

Lembro-me de ser miúda e entregar ao Sr. António da mercearia a lista das compras. Era ele que ia buscar os produtos e que os acomodava no saco (de pano). Agora A senhora de 85 anos tem de saber o que é um código de barras e como posicioná-lo sob o leitor da caixa automática do supermercado. Acontece atrapalhar-se, as formigas na fila iniciam um coro minimalista de resmungos, a velhinha enerva-se...tudo por causa de um pacote de bolachas. As formigas-caixa de nome na lapela voltam costas à cena. O trabalho, mais uma vez, não é delas. É da máquina e dos seus operadores,  novos ou velhos. É Trabalho Sombra, executado  para as grandes empresas e, repito, pelo qual chegamos até a pagar. Os vales de desconto são migalhas de retorno pelo nosso desempenho na selva do capitalismo.


«Presentemente, na nossa sociedade, vivemos um paradoxo curioso: apesar de terem sido criados inúmeros meios tecnológicos para nos facilitarem a vida, tudo parece mais difícil e o ritmo do dia-a-dia não pára de aumentar, contribuindo para o nosso desgaste. Trabalhamos muito mais do que a algum tempo atrás, estamos a desempenhar cada vez mais tarefas com a falsa crença de podermos ganhar tempo. O Trabalho sombra parece imparável, tendo-se infiltrado sub-repticiamente nas nossas vidas, como se fosse uma praga invisível.» Pedro Afonso, médico Psiquiatra.

Os exemplos de Trabalho Sombra estendem-se a praticamente todos os minutos da nossa vida, estejamos nós acordados. Estendem-se ao ponto de nos absorverem tempo. Tempo precioso, dado de bandeja aos empresários, que assim cortam nos custos enquanto escravizam a (já) emagrecida massa laboral, como no caso de seguranças fardados a arrumar carrinhos de compras nos estacionamentos - Trabalho Sombra à descarada!


Somos, das formigas europeias, as que mais horas de trabalho carregam às costas. Sim, eu vi os números e os gráficos, os mesmos que pecam por omissão: nenhum deles tem em conta o dito Trabalho Sombra. Somem às vossas 35 horas semanais outras 3 ou 4 para obterem o tempo real de trabalho, parte dele despendido a montar uma estante segundo instruções escritas em mandarim. Nunca é demais lembrar: tais horas extra pertenciam a alguém, agora desempregado pelo faça-você-mesmo. 

Eis o Maior Encantamento de Todos: demitam-se dos Trabalhos Sombra que vos escravizam, formigas! Existem sempre alternativas, meios para se escusarem de trabalhar para quem abusa do vosso tempo, garantindo assim cofres cheios em modo automático. Descobri uma bomba de gasolina com funcionários prestativos, aos quais dou bolinhos e uma nota de gorjeta pelo Natal. Se pago o saco, peço amavelmente ao senhor da caixa do supermercado que me ajude a enchê-lo, tão amavelmente que até me mostra a foto do rebento recém-nascido. Não se trata de economia paralela (no caso da gorjeta) nem de paleio deitado fora. Trata-se de resgatar a nossa humanidade, em gestos em que todos ficam a ganhar. 

Palavra de Encantadora!

sábado, 30 de janeiro de 2016

O Factor Lassie

O Factor Lassie (ou the Lassie-Factor, em jargão científico)


Aviso: a teoria Factor-Cão assenta no total empirismo, este amplamente certificado pela comunidade científica desde o século XVIII. Os dados que a comprovam baseiam-se no estudo de 10.326 casos de indivíduos do sexo masculino, casados ou em união de facto, com uma margem de erro de 0,0009%. Fonte: Encantanúmeros Lda.




Esta mensagem é para as amigas formigas que, por motivos alheios à sua razão, se apaixonam por quem nunca - mesmo chovendo burros alentejanos - o devem fazer: o homem casado.

Ao contrário da fêmea-formiga, o consorte é, por natureza, acomodado. Se alguma de nós atina com o lar a esboroar-se, logo nos mudamos para um T0, antes que a laje do T6 nos caia em cima. O nosso macho-casado, pelo contrário, descobre o canto mais confortável por entre as ruínas, para ali arrastar o sofá (dos que já revelam uma covinha), onde volta a instalar-se como se nada lhe dissesse respeito. Mais uma vez, fica o aviso: trata-se de uma constatação de base absolutamente empírica, mas com cinco décadas de ininterrupta observação. Através da mesma, porém, assisti a casos em que são eles a sair de casa. A carne é fraca e quanto mais bonita for a carne, mais fraca a deles se torna . Ou seja, mudam-se outro sofá, quiçá acompanhados de uma versão mais jovem da companheira anterior. Mesmo assim, apenas em 0,000001% dos casos, esta se trata de uma mudança definitiva.

Cão de raça Collie
Tal infinitésima taxa de sucesso deve-se ao Factor Lassie. Imagine-se o amado-casado de malas feitas e a porta aberta. De súbito, por esta mesma porta...entra uma enorme e carente Lassie! No derradeiro momento da decisão, ele vacila, vacila ao ponto de tombar de costas pela força afectuosa do canídeo a lamber-lhe as bochechas. A porta fecha-se e, caras e imprudentes formigas, creiam em mim, com o vosso amado-casado fechado do lado de dentro.

Mas porquê ser um cão a prendê-lo? Porque não uma criança recém-nascida? Ora, ao ponto de comodismo apontado no terceiro parágrafo deste texto, a formiga-macho já deverá ter a descendência bem crescida e emancipada. A Síndrome do Ninho Vazio instalou-se, entretanto, juntamente com uma leve, mas insidiosa depressão. A companheira, sempre mais vivaça e atenta (outro facto!), vai ao abrigo de cães mais próximo e eis que o ninho parece voltar a encher-se. O laço recompõe-se, ruínas à parte. A Lassie o, como qualquer cão que se preze, também encontra o seu lugar no sofá (o mesmo da covinha) e as promessas feitas em leito clandestino esvaem-se, lambidela atrás de  lambidela.


O Factor Lassie resume-se mais ou menos a isto: o amor incondicional prometido no altar e arruinado por anos de convivência de duas escovas de dentes, desloca-se para aquela criatura de quatro patas. A ordem amorosa restabelece-se por via desta operação, tão simples, quanto eficaz. Tire-se o chapéu à consorte.

Ainda não descobri qualquer feitiço para anular o Factor Lassie. Humildemente, aponto três Encantamentos:

-Encantamento #1: ao primeiro sinal de Factor Lassie na roupa do vosso amado-casado (pelos, perfume a ração), perguntem-lhe se algum dos filhos entrou no programa Erasmus; sendo a resposta afirmativa, executem o

- Encantamento #2: recuperem o saco de ginástica dele, o mesmo utilizado para trazer o conhecido "kit básico de higiene" e encham-no de brinquedos para animais de estimação. Devolvam-no com um sorriso maroto. Caso ele não entenda a mensagem (!), passem para o infalível

-Encantamento #3: durante o cigarro pós-sexo anunciem candidamente, "Quero adoptar um animal de estimação. Um "collie", tipo "Lassie", estás a ver?  Leva-lo à rua quando estiveres cá...fofinho". Se o amado-casado der uma desculpa para se levantar de rompante e vestir-se, deixem-no sair e rumem logo à agência de viagens mais próxima. O que os olhos não vêem, coração não sente.

Caras amigas formigas: saiam do carreiro das amantes, às quais se prometem Paraísos com as cores melosas das capas da literatura de cordel. Nenhuma de vós está livre do Factor Lassie. Entre outros 456.365 factores, ainda pouco estudados, mas igualmente devastadores.

Palavra de Encantadora!

domingo, 17 de janeiro de 2016

Uma campanha triste

O preço da Liberdade é a vigilância eterna. Thomas Jefferson


Já dizia alguém (o senso-comum?) que não podemos obter resultados diferentes ao fazer algo da mesma maneira. Resultados diferentes e, no mínimo, empolgantes, pedem acções que contrariem o marasmo e a sua amiga mais íntima, a desesperança. Novos resultados pedem, no mínimo, acções criativas. Tudo isto para dizer que tenho acompanhado, 
bastante disfarçada, a Campanha para as novas Eleições Presidenciais. Meti um capote às costa e misturei-me com os estudantes de Coimbra para ouvir uma serenata a uma cândida candidata. Virei o capote do avesso, pus-lhe uma gola e ala para o Alentejo. Introduzi-me à socapa num grupo de cante alentejano e pude observar outro candidato, em tempos padre e com muitíssimo mais sexappeal do que o agora político. Também me desloquei às feiras onde, qual David Attenbourough, espreitei por entre os molhos de couves e alfaces o candidato mais hiperactivo, que hiperactivamente beijava crianças e idosos. E, claro, assisti a mais um comício-pastel-de-bacalhau do candidato com os piores dirigentes de campanha de sempre: além de juntarem as iniciais do nome do homem de forma a compor uma onomatopeia, não contentes com o serviço ainda lhe compuseram um hino com resquícios de canção de intervenção pós-25 de Abril. Podia contar como foi com os restantes candidatos a Presidente da República, mas só de pensar em continuar a discorrer sobre tal assunto, abre-se-me a boca num bocejo de espantar aves e rinocerontes.

Em resumo: existe algo demasiado pequeno, maçudo e, pior, suburbento (de subúrbio), na  antiga super-potência chamada Portugal dos Descobrimentos. As tripulações que rumavam em direcção ao desconhecida, à imagem dos cosmonautas e astronautas actuais, regressavam com menos de metade dos seus homens. O mesmo sangue corre nas  veias do povo que hoje morre, sem glória, nos corredores dos hospitais nacionais. Somos os mesmos, mas os nosso líderes, no passado recente, só nos desiludem pela sua incapacidade de nos unir em prol de um Bem Maior. As naus apodrecem no cais, sem rumo, sem rei, sem ver rosto que dê rosto à Pátria. Morrem cidadãos em prol de nada. E a resposta que damos às famílias enlutadas e empobrecidas é uma Campanha triste, bisonha, igual a todas a que já assistimos. O que promete um futuro Presidente triste, bisonho e semelhante a um actor a quem dão um velho papel nada condizente com o cenário actual. Nenhum milagre, nenhuma magia pode acontecer de Encantamentos mal-feitos e pior, com os mesmos maus resultados do Passado. Sem pós de fada, ninguém voa. Sem um Líder dotado, pelo menos, de bom-senso para demitir dirigentes de Campanha inaptos, adivinha-se um Futuro na paz de um barco-fantasma. 

Os Comícios-comes-e-bebes, os bailaricos, as feiras, as serenatas, os hinos e coros...tudo um enorme e triste déja vu. Caras amigas, conterrâneas formigas, quando veremos cumprir Portugal? 

domingo, 10 de janeiro de 2016

Brownies democráticos - a receita!

Se não sois capaz de um pouco de feitiçaria, não vale a pena meter-vos em cozinheiro

Colette 


O aspecto não devia iludir: cubos de bolo de chocolate maciço com cobertura e raspas de merengue prometiam bastante. Éramos três, sentados num daqueles Grand Café com empregados de avental comprido: esta vossa Encantadora, um primo (igualmente feiticeiro) das florestas do Norte e...a minha mãe. Abra-se aqui um parênteses: a minha progenitora, formiga fora do carreiro, sempre manteve uma relação difícil com a comida. Recusa-se a cozinhar, ao mesmo tempo que raramente gosta do que come. Quando a ouvi também pedir um brownie suspirei. A primeira garfada iria saber-lhe bem. A segunda menos, a terceira menos ainda. Podia o chef ter ganhado uma estrela Michelin, que sobre as migalhas ela decerto comentaria algo depreciativo. Fechem-se os parêntesis: vieram os brownies, acompanhados pelo chá e a ilusão de afinal sermos três burgueses do século XIX a aproveitar o super-inglês chá das cinco. 

Ingenuamente, cheguei a crer num turnning point, un coup de théatre, e escutar da boca da minha mãe um elogio ao brownie encomendado. O meu primo exultava (acha a comida do Norte insípida), eu devorava o chocolate proibido (até as melhores encantadoras por vezes se submetem a dietas prosaicas - desconheço um feitiço de emagrecer). A senhora minha mãe, esta depenicava.

Abra-se um novo parênteses: embora raramente goste do que ingere, a minha mãe simplesmente adora vir comer à minha cabana. "Ai, a tua comidinha! Gosto tanto da tua comidinha", constituindo o diminutivo afinal o elogio maior, uma chuva de aplausos retumbante após uma sessão de Ópera. Mas o cenário era agora o do Grand Café. E os brownies não tinham saído do meu forno revestido a encantamentos antigos. Costumo levá-los, à casinha materna, na minha cesta de capuchinho vermelho. Pelo caminho vou distribuindo alguns pela vizinhança, incluindo o Lobo Mau, os Três Ursos, os Sete Anões (a Branca de Neve, como é do conhecimento publico, casou-se, divorciou-se e vive nas Laranjeiras) e um ou outro amigo, daqueles que só devolvem os tupperwares passado uma década.

De regresso ao Grand Café e a aguardar o esperado anti-clímax relativamente à qualidade dos brownies. Com a respiração suspensa, eu e o meu primo do Norte escutámos sentença de morte aos bolos chiques: "Estes não são assim tão bons..." (olha a novidade!), mas o humor daquela que me deu à luz, a par da sua rejeição aos tachos, é igualmente lendário. Assim rematou o comentário: "Prefiro os brownies democráticos! São mais fofos." Lá se foi o encantamento ilusório do Grand Café através do riso descontrolado, meu e do meu primo. Brownies democráticos! Brownies democráticos!  Os vulgares. Os das pastelarias de bairro. Os que se distribuem ao povo. Chamar democrático a um brownie equivale a associar o adjectivo "popular" a um Grand Magasin parisiense - aliás, algo que ela já fez.

Os meu brownies, em resultado do atrás descrito, são largamente democratizados. Durante alguns anos mantive a receita centenária guardada no meu Livro de Encantamentos. Hoje, perante a evidência desta ser de Brownies Democráticos, largo mão do segredo em atenção às minhas queridas formigas. Eis a receita:

2 Cx de farinha; 2 Cx de açúcar; 1 Cx de chocolate (ou cacau) em pó; 1 Cx e 1/4 de leite; 2 col. de chá de fermento em pó; 6 col. de sopa de manteiga; 3 ovos.

Misturar o açúcar, a manteiga e uma chávena de farinha até ficar em creme. Misturar à parte a outra chávena de farinha, o chocolate e o fermento. Junta-se esta à outra mistura, peneirando-a aos poucos e alternando com os ovos e o leite. Deitar num tabuleiro muito bem untado e cozer em forno médio por 3/4 hora. Deixa-se arrefecer e corta-se em cubos. Distribuem-se democraticamente pela comunidade.